domingo, 3 de outubro de 2021

26º Sr. Oswaldo e a "Macchina Zaccarias"

 Achei estranho, aqui pros lados onde moro agora, ninguém dar notícias de ZACCARIAS… 

Pior ainda: Foi mostrar a foto e ouvir uma interjeição de exclamação, de pessoas que sequer tinham noção do que se tratava aquilo!… 

Mas, incrédulo mesmo, eu fiquei ao dizer que na ausência dela, muita gente fica sem um prato de arroz na mesa, e ver a expressão de dúvida na cara das pessoas!

Zaccarias nada mais é que… Não, não! Não falo do humorista que fez nossa alegria aos domingos! Não é dele que estou falando!

Na verdade eu falo de algo que existia nas cidades e fazendas onde o plantio de arroz era comum.

Por aqui onde eu moro as terras são boas para o plantio; terras ricas, produtivas, mas ainda que se plante arroz aqui ou acolá, são colhidos por maquinários modernos e depois transportados à granel até as grandes empresas que ficam em áreas industriais.

Depois, só saem de lá em fardos ou pacotes diretamente às distribuidoras ou pontos de comércio na zona urbana.

E assim a população perdeu por completo aquele contato, onde se podia trazer um saco de arroz em casca direto do sítio e depois retirá-lo já beneficiado, quase pronto para o consumo… 

Mas eu tive a felicidade de conhecer na minha infância essas grandes e primitivas máquinas de beneficiar arroz (Macchinas Zaccarias)! 😉

Na cidadezinha onde eu morei escutava-se diariamente o “tchaco-tchaco” das peneiras e o ronco poderoso do motor dessas imensas máquinas, que precisavam de um galpão dedicado apenas para abrigá-las, de tão grandes que eram!

E foi assim que me vi pela primeira vez dando cambalhotas e enterrando os pés na palha ardente, de um monturo de cascas atrás da “máquina de limpar arroz”, quase na saída da cidade, aos meus seis anos de idade.

Depois de algumas andanças pela Cidade, morando de cadinho em cadinho em casas de aluguel, fui parar na Rua Três de Fevereiro, logo acima da Rua Boa Esperança.

E foi na Rua Boa Esperança, quase em frente a casa da Professora Maria Nilza que eu descobri, para minha sorte (ou azar) que havia outra máquina dessas!

Mais acanhado e mais rodeado de casas da área urbana, o estabelecimento comercial guardava sua palha atrás dos muros, longe da fuzarca da molecada, monturos de palha que de longe eu via, mas que nunca tive acesso… 

Mesmo assim, ao voltar da Escola eu gostava de parar e “dar uma esticadinha” até lá dentro, pra observar as imensas polias que giravam loucamente através de correias, a balançar e sacolejar o arroz até que sua palha fosse inteiramente arrancada. E aquela poeira, de cheiro e sabor adocicado, extraído do “farelo”, que papai de vez em quando pedia para buscar, para dar de comer aos porcos de nosso quintal.

No princípio eram o Pio e o Oswaldo. Ficavam por vezes sentados nos altos degraus que davam pra rua, a bater papo enquanto a máquina trabalhava por eles dentro do galpão.

As lembranças são confusas e apagadas… Mas eu falo de um tempo que vivi há 44 anos passados…

Mas das lembranças que eu tenho (e por favor me corrijam, se eu estiver errado), o Pio era um senhor mais baixo e estava sempre de boné, enquanto o Oswaldo era um senhor alto e magrelo, de cabelos grisalhos. Acho que foram sócios na antiga Máquina de Arroz.

E o tempo passou, arrastou com ele objetos e pessoas…

E o Pio foi levado primeiro. Morava, creio eu, ao lado da Máquina de limpar arroz. Se foi entre o final da década de 70 ou começo de 80, de mal súbito, enfarto fulminante, segundo as notícias que eu guardei na lembrança desde aqueles tempos.

E o Oswaldo continuou na tradição – e na necessidade mesmo – de se manter um estabelecimento com a máquina de limpar arroz funcionando dentro da Cidade.

Hoje, porém, tenho a triste notícia do seu passamento… 

Foi, talvez, encontrar-se com o amigo e antigo sócio do outro lado da vida! Mais perto de “São Pedro”…

E ali, nos Campos Elísios, pode ser que tenham arroz farto, a limpar o ano inteiro, pois o santo não deixará a água faltar!

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Uma homenagem ao Sr. Oswaldo, tradicional no antigo ofício de beneficiar Arroz, nessa profissão urbana que já entrou em extinção.

E aos familiares e amigos, meus sentimentos de pesar.



quarta-feira, 11 de agosto de 2021

25º PARA REGISTRO E MEMÓRIA

PARA REGISTRO E MEMÓRIA
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(Década de 1980/meados de 1990)
E com estas quatro imagens, triste eu deixo registrado um tempo que perdeu-se no Tempo, quando as terras da Família Fernandes trocou de dono e passou a se chamar FAZENDA SANTA MARTA.
De quando Sr. Pedro Orlanda adquiriu e investiu muito dinheiro nesse cantinho de terra, que vai lamber as águas da Represa de Furnas no Porto Fernandes (Sim! Esse porto de balsa ainda conserva o nome dos antigos donos!)
Essa terra que viu seus pastos e suas velhas lavouras de café sendo renovados, com a limpeza do terreno e novas curvas de nível, com o plantio de milhares de pés de café dos tipos “mundo novo” e “catuaí”, com mudas criadas e desenvolvidas ali mesmo.
Terra que viu a inovação tecnológica trazida pelo empreendedorismo e visão do Sr. Pedro Orlanda, que no espaço de poucos anos (aproximadamente uma década) revitalizou aquele “canto do fim-do-mundo”, lugar onde pouco mais que um caminhão leiteiro costumava circular em anos passados.
Lugar que se tornou referência da região com sua lavoura de café altamente mecanizada, pois seu dono o Sr. Pedro Orlanda, possuía em Jaboticabal (SP) uma fábrica de Implementos Agrícolas e tinha disponível tudo que necessitasse pra tocar uma grande lavoura.
Velha Sede e Nova Sede: Era assim que chamávamos as duas principais casas da Fazenda;
Uma (a velha sede) que ficava às beiras da Represa, onde creio que tudo se originou, com o Senhor Joaquim Fernandes criando sua família e depois entregando às mãos de seu filho, José Fernandes, todos aqueles alqueires de terra.
E a outra (a nova sede) no alto de uma colina, ao lado da estrada, já logo na divisa de terras com o Sr. Jafé.
Nas mãos do Sr. Pedro, essas duas casas ganharam vida e a Velha Sede agregou trabalhadores que saíram de Jaboticabal e acompanharam o patrão até à Fazenda, pra iniciar os primeiros serviços.
Ali conheci Dna. Cida e vários membros de sua família, mulher trabalhadora e moradora da região, contratada pelo Sr. Pedro, que vinha fazer o almoço e cuidar da faxina na velha Sede todos os dias.
E pela nova Sede também passou muita gente, incluindo Sr. Ademar e família, que o patrão trouxe das regiões canavieiras paulistas, pra fazer a primeira administração do local. Junto com ele, chegou o Zezinho – seu cunhado, com a família – pra operar e fazer a manutenção da primeira Máquina de Esteira que desembarcou ali.
Foi com essa máquina de esteira que o Zezinho, e bem depois, seu sucessor (o Miltão, trazido de Guapé e futuro esposo da Cidinha, que faz parte da família de Dna. Cida) limparam todo o terreno, revolveram os torrões e encheram os morros de curvas de nível.
Depois do Sr. Ademar, até o Sr. João Graciano – antigo operador da Balsa do Porto Fernandes, largou seu ofício na Balsa e veio morar por uns tempos na Nova Sede, naquela época perto de se aposentar, já quase em processo definitivo de mudança pra cidade.
Desses tempos, a casa também hospedou o Alziro (de Jaboticabal, motorista de caminhão da Fazenda), Seu Nelson (também de Jaboticabal, futuro sogro do Vicentinho e do Alexandre), o “Paisagem” (apelido do Seu Antônio, que trabalhava na fábrica do Sr. Pedro em Jaboticabal e ajudava em serviços variados na Fazenda), Seu Eduardo (mestre de obras), e o “Trabuco” (que era o motorista do caminhão que transportava os tratores e implementos agrícolas para a Fazenda).
Nas mãos do Sr. Pedro Orlanda, nesta Fazenda foi construído um Alojamento, que ficava próximo da Velha Sede e cuja finalidade era abrigar apanhadores de café que a Fazenda contrataria na época da safra. A previsão era que muito café seria colhido, e nem mesmo os trabalhadores da região circunvizinhas seriam suficientes para colher!
Desses trabalhadores, lembro que chegou gente de Cabo Verde e de Pedra Azul, no norte de Minas.
O Maron, e na mesma época o Miraíldes e o Athaíldes (esses dois rapazes, de nomes esquisitos, eram gêmeos e vieram de Pedra Azul) e com eles, vários outros de quem me lembro bem os rostos, mas não me lembro os nomes.
Para a construção do Alojamento, Sr. Pedro contratou os serviços de meu Tio João, que é mestre de obras.
Sob a responsabilidade do Seu Eduardo – mestre obras que o patrão trouxe de Jaboticabal – ficou a construção da imensa tulha de café, que era dividida em duas partes: A primeira divisão era para abrigar o “café em coco” ou café a granel; Era um imenso caixote de alvenaria, todo revestido por dentro (o piso e as paredes com madeira que ia até o teto).
E na segunda divisão da tulha estavam assentadas as máquinas de limpar café e limpar arroz. Nessa segunda parte também se estocavam os sacos de café já limpo – cada um com 60 kg, e fazíamos a pilha alta, até quase na altura do telhado. Nessa tulha eu trabalhei bastante tempo, com a Máquina de Limpar Café.
Nessa Máquina eu aprendi a regular as correias, a trocar as facas e as telas que debulhavam o café, a regular o balanço da máquina pra limpar o café exatamente do jeito que o patrão queria: O “primeira linha”, o “segunda linha” e o “terceira linha”. Eu sabia regular o grau de inclinação e a velocidade da peneira pra separar certinho os grãos inteiros e os quebradiços. Eu aprendi a identificar e separar o café de casca fina e o borrachudo.
Seu Eduardo também construiu o Terreirão e todo o seu complexo, que incluíram:
Um Lavador de Café e um Secador de Café.
O Terreirão também era dividido em duas partes:
No primeiro piso, descarregavam o café vindo da roça, aquele que não caía no chão e os apanhadores colhiam com as mãos sobre um tecido estendido no chão. E a gente remexia ele no terreirão até secar o suficiente ao Sol.
No segundo piso era deixado ao Sol o café rastelado, aquele que tinha contato com o solo da lavoura que caía com o vento e com a chuva. Esse café passava primeiro pelo Lavador de Café pra tirar a terra solta, tirar os torrões e lavar a casca externa. E depois ele seguia para este segundo piso pra secar.
Depois desse primeiro estágio ao Sol, todo café era levado para o Secador.
O Secador de Café era uma máquina monstruosa: começava pela fornalha onde se colocava lenha dia e noite na época da safra, pra gerar calor e secar o café. E depois da fornalha havia uma torre de metal.
Uma esteira com calhas recolhia os grãos de uma caixa de cimento aos pés do terreirão e levando o café até o alto da torre, jogava-o dentro dela. Quando a torre estava cheia, acendíamos a fornalha pra aquecer o café. Depois, um sistema de calhas recolhia o café aquecido nos pés da torre e conduzia outra vez para o alto da torre. Nesse movimento de vai-e-vem o café ficava às vezes até dois ou três dias sem interrupção.
E eu também trabalhei ali, no Secador! Cheguei a passar muitas madrugadas alimentando aquela fornalha, justo nessa época de safra, que é tempo de frio e vai aproximadamente de Abril até Agosto.
O patrão também me ensinou medir a umidade do café:
Tinha um aparelho delicado que ele guardava a sete chaves em seus aposentos na Nova Sede. E eu era autorizado a entrar lá com amostras de café debulhado pra fazer o aferimento. Quando o café atingisse um “x” por cento de umidade, era hora de desligar o Secador e esperar esfriar. Quando esfriava, outro sistema de calhas levava o café para a grande tulha e despejava naquele imenso caixote que eu já falei mais acima.
Trabalhei um pouco em cada função naquela Fazenda: Lá eu fui tratorista e pulverizei imensas ruas do cafezal com adubos líquidos e inseticidas. Também transportei café e adubos em carretas ligadas ao trator.
Trabalhei na Oficina da Fazenda, que ficava ao lado da Nova Sede. Lá aprendi a soldar peças, a trocar pneus, pastilhas de freio, discos de embreagem, filtros de ar, de óleo e de combustível nos tratores.
Só não fiz serviços pesados, nem pilotei a máquina de esteira…
Mas o enorme trator azul “Ford 4600” (novinho, novinho naquela época), os dois velhinhos “Massey-Ferguson 50-X”, os dois pequenos tratores “Agrale 4100” e a velha camioneta “Toyota Bandeirantes”, todos eles eu experimentei pilotar!
Seu Eduardo também fez as casinhas dos colonos que ficavam ao lado da estradinha, atrás da Oficina.
Sr. Pedro trouxe uma máquina de fazer blocos e até os blocos de concreto que construíram as casinhas dos colonos e a tulha de café foram fabricados lá na Fazenda!
Nas casinhas moraram muitos funcionários da Fazenda com quem fiz amizade. Amizade boa, que dura desde aquela época.
Havia na Fazenda algumas terras preparadas apenas para o plantio de arroz, feijão e milho que serviam para alimentar os funcionários. Na fazenda também se criavam porcos, bois e carneiros em pequena produção. Haviam três pomares: Um na Velha Sede, um na Nova Sede e outro próximo do curral. No meio do cafezal havia também um pedaço de terra não arado, que sustentou as ruínas de uma antiga casa. Ali também haviam pés de frutas, principalmente um manguezal.
O patrão sempre levava no porta-malas do carro, para Jaboticabal, os frutos da terra para presentear seus parentes, seus funcionários que trabalhavam pra ele na cidade, ou pra consumo próprio.
A Fazenda Santa Marta foi como um cometa luminoso que passou por aquelas bandas, clareou e encheu de vida e alegria as terras tão distantes e isoladas que ficavam aos pés da Serra, na Volta Grande… E como todos os cometas, ela passou, clareou e depois foi embora.
Hoje é com muita tristeza e dor no coração que eu registro aqui essas palavras, para que não morram nem se apaguem, como a Fazenda se apagou…
Sei que depois da morte do Sr. Pedro, a Fazenda entrou em decadência. Os herdeiros não deram à ela a mesma importância que ela teve para o antigo patrão. E assim, o cafezal envelheceu e foi morrendo sem se renovar. Os funcionários aos poucos também abandonaram o lugar.
E agora, seus filhos ou netos venderam as terras da Fazenda Santa Marta.
Não sei quem foi os responsáveis – se foi a família ou os novos donos – mas infelizmente também arrancaram do solo o que restou do velho cafezal modificando radicalmente o aspecto dessa Fazenda, e plantaram soja em seu lugar.
E certamente as construções que sobreviveram à Era do Cafezal, ou foram desativadas e desmontadas, ou mudaram de função, pois com soja se trabalha diferente do café…
Resta somente dizer:
Adeus Fazenda Santa Marta! Posso até um dia passar por aí pra te visitar, mas sei que aos poucos se apagam os traços que restaram daquele tempo que você nos trazia felicidade!
E como uma velha pessoa com Alzheimer, sei que mesmo te visitando, eu não serei mais reconhecido por você, que agora mudou de dono, de aspecto, de personalidade e de alma.
Adeus, Fazenda! Teu ciclo encerrou, como antes de você se encerraram também os tempos da Família Fernandes.
Vai ficar agora no coração e nas recordações.
Pra você, Fazenda, dedico três estrofes das músicas de Guilherme Arantes (no tempo que trabalhei aí, o cantor estava no auge do sucesso):
Sua verdade é o que me atrai
Ensina o que eu não sei
Está em toda parte
Onde eu chamar seu nome
Onda de luar
Me bateu no coração
Quebrou o meu silêncio
Entrou o seu perfume
Prazer em conhecer
Um gosto sem igual
Da tal felicidade
Bom saber
Que há sempre um tempo pra gostar...






quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

24º AO MESTRE, COM CARINHO.

Lembro até hoje que quando era pequeno, em férias escolares do mês de Julho, certa vez numa visita que fiz aos meus avós em São Paulo, fui levado pelas mãos de meu avô a um passeio.
Naquele dia, eu e ele percorremos um bairro da Zona Leste chamado Vila Carrão.
Em determinada rua estreita meu avô parou diante de algumas casas - todas juntinhas, espremidas, quase sem jardins - porém, casas centenárias - sobradinhos de muros baixos, com portas altas e janelas ainda de madeira.
Demorou-se um tempo olhando para uma dessas casas e apontando-a, me falou assim:
"__Aqui morou Dona Matilde, minha Professora..."
Seu olhar perdia-se num passado que eu não conheci, absorto em pensamentos e lembranças de seu tempo de criança, enquanto ele fitava aquela moradia... Então meu avô desfilou uma série de bons adjetivos, explicando-me como foram doces as aulas da sua Infância!
Oras, meu avô teve muito pouco estudo, não ultrapassando os primeiros anos da Escola Primária; e suas lembranças de um tempo remoto resistiram à adolescência e depois à vida adulta. E agora, já na velhice, tinha a oportunidade de demonstrar ao neto o quanto esse contato dele com sua querida Professora foi positivo e construtivo!
Naqueles dias de visita eu também já estudava em Minas Gerais e tive, graças a Deus, bons Professores! Estava ainda no Ensino Primário e imediatamente remeteu à memória os doces dias de aulas no "Grupo Escolar Dona Agostinha Flor de Maria".
As horas frescas, proporcionadas pela sombra projetada das árvores frondosas que protegiam a frente da Escola e transferiam uma calma sensação de paz na sala de aulas, jamais saíram do meu pensamento!
Menino calado que fui, menino arredio! Porém, estar na Escola fazia sentir-me em casa, pois naquele longínquo ano da minha vida tive uma Professora que iluminava meus dias...
Seus trajes, seu jeito de andar e seu modo de falar me lembravam alguém da família. Sua voz doce e sua linda caligrafia me fascinavam. Sua sabedoria me impunha respeito e uma muda veneração...
Estávamos no ano de 1978 e Dona Luzia Laudares era então a minha Professora.
Saber que ainda tinha a minha Professora após aquele período de férias - enquanto meu avô só possuía lembranças - me encheu de dó e tristezas pelo meu avô.
Naqueles tempos da Infância, a ideia de perder alguém próximo ou querido ainda estava longe de mim... Essa ideia começou a se materializar tempos depois, bem depois, com a perda de meu próprio avô.
E assim, de tempos em tempos recebo uma triste notícia - coisas da vida, natural, que todos nós estamos sujeitos, mas que ninguém quer esperar ou ouvir! E quando isso acontece, alguém por quem temos carinho acaba se transformando em lembranças, passando para um campo invisível e intangível, de onde nenhuma ação ou manifestação vem, além da dolorosa saudade.
E é por isso que escrevo essas palavras hoje...
Minha Professora Luzia Laudares prezava muito nossas redações. Todas imperfeitas, com erros de caligrafia, de gramática e de construção de frases. Mas eram lidas por ela com muita atenção; e sempre havia uma palavra de incentivo - não importasse a gravidade dos erros no texto - e a importância que ela demonstrava com todas aquelas mal traçadas linhas me enchia de orgulho!
E suas aulas - sempre ministradas com muito amor - não nos permitia ver o tempo passar naquelas poucas e prazerosas horas na sala de aulas, que se repetiam dia após dia sem nunca cansar.
Hoje, porém, nesta Quinta Feira - 18 de Fevereiro de 2021 - recebo a triste notícia que ela se foi...
Levada pela Covid que tem ceifado tantas e tantas vidas, que tem trazido tristeza aos lares e colocado tantas famílias em luto! E hoje colocou também o meu coração...
Porém, se os dias agora me ficaram um pouco mais cinzas, a noite para mim será sempre mais clara, pois a partir de hoje minha querida Professora do 3º Ano Primário foi morar no céu, junto às estrelas...
Como um tesouro, vou guardar na lembrança nossa interação na Sala de Aulas, seu cumprimento na chegada, sua despedida na saída, sua correção das provas e redações, seus ditados, suas histórias...
Gostaria muito de tê-la visitado, mas quando estive em Guapé há alguns anos, soube que já não morava mais ali, e que agora estava junto aos seus parentes em Belo Horizonte, talvez.
E pela idade e pelo tempo, já tive medo de não poder vê-la mais...
Mesmo assim, através da Soninha (a editora do Jornal Bão de Prosa) eu tive notícias dela.
E graças a Deus e à Soninha também, eu tive a impagável oportunidade de fazer Dona Luzia saber que nunca a esqueci, mesmo se passando tantos anos!
O futuro não é tão previsível como gostaríamos que fosse e não sabemos o dia de amanhã...
Mas caso eu também chegue na minha velhice, e nesse dia eu tenha oportunidade de voltar ao Guapé, quero levar meu futuro neto pelas mãos e com ele passear na Cidade...
Ao passar por certa rua da Cidade Nova, quero estar por um momento em silêncio diante de uma determinada casa...
Talvez já não seja mais como fora antigamente, com as características das casinhas de Furnas, em blocos de concreto... mas de qualquer forma, é um lar que permanece ali, no lugar.
E com meu olhar perdido num passado que meu neto não vai conhecer, absorto nos meus pensamentos e lembranças de criança, quero apontar-lhe esta casa e dizer:
"__Aqui morou Dona Luzia, minha Professora...".

Adeus, Dona Luzia Laudares! Adeus, Professora querida!
Esta é a última Redação que eu faço para a senhora... Sei que se pudesse ler, corrigiria a pontuação e meus erros de construção das frases, naquele seu jeito firme, porém brando e doce, que conquistou tantos dos seus eternos alunos...
Obrigado por fazer parte da minha Infância! Que Deus lhe pague por tudo.
E até um dia, talvez...

Marcelo Lagoa de Almeida




domingo, 27 de setembro de 2020

23º Foi de tristeza, sim!

CLAUDINHO DO ZÉ DAMAS

Ele era especial…

Um anjo de apenas 8 ou 9 anos encarnado num corpo adulto, de uns trinta e poucos anos.

Morávamos na mesma Rua. Fomos quase vizinhos.

O Claudinho eu conheci desde a minha infância e naquela época ele já era um "adulto-criança".

E sempre foi do mesmo jeito:

Sempre sorridente, com seu vozeirão de gente grande ele brincava igual as crianças, por causa de seu raciocínio que não se desenvolveu com a mesma rapidez do corpo.

Mas era um doce menino. Obediente aos pais, todos os dias ele descia a rua de casa e seguia em direção ao centro da pequena cidade mineira, onde eu morei, para buscar o leite.

Naquele tempo não existia “leite pasteurizado”, ninguém sabia o que era “leite de caixinha” ou “leite de saquinho”. Tudo era vendido IN NATURA: A farinha, o açúcar, o café, o arroz e o feijão. Tudo era pesado à frente do cliente, depois embrulhado em “papel de pão”.

O leite também era assim e o Claudinho levava sua vasilha de alumínio para trazê-lo. Voltava cantando músicas infantis e balançando perigosamente sua vasilha cheia de leite, com risco de derrubar tudo no chão!

Sonhava em ser Locutor de Rádio. Diante da impossibilidade, Claudinho passava horas e horas debaixo da sombra das árvores no seu quintal, ligando as árvores com um emaranhado de barbantes e latas e brincando sozinho de “telefone sem fio”.

Eu me mudei de Guapé há muitos anos (há 29 anos) e as notícias às vezes demoram um pouco pra chegar…

Porém, há pouco tempo eu soube que o Cláudio faleceu. Mas não faleceu agora! Já faz algum tempo que ele se foi.

Fiquei triste e despertou-me a curiosidade:

“O Cláudio, apesar das suas limitações, parecia um rapaz saudável… Do que teria falecido o Cláudio, rapaz tão novo?”

E hoje, a notícia triste se completou:

CLAUDINHO MORRERA DE TRISTEZA.

Muito apegado ao pai, Sr. José Damas – um caridoso e respeitado senhor – Claudinho começou a ficar triste desde que o pai falecera…

Tempos depois perdeu também Dna.Tiana, sua mãe.

Cláudio era o filho mais novo; e não sei dizer se era filho legítimo ou adotivo.

Só sei que, com a morte dos pais, Cláudio foi levado para a casa de uma de suas irmãs, que ficava na zona rural de Guapé. Mas infelizmente, não se adaptou ao novo ambiente.

Trouxeram-no outra vez à cidade, mas como na casa onde morou não havia ninguém que cuidasse do rapaz, foi então levado ao abrigo da Vila Vicentina (outrora chamada de “Conferência” pelos habitantes da cidade). E que ficava bem próximo à casa onde ele passou sua vida toda, com os pais.

Segundo o depoimento da sobrinha, Cláudio saía todos os dias da Vila Vicentina e perambulava nas ruas da cidade. E gostava de ficar rodeando a casa que outrora foi o seu lar… 

A casa permaneceu fechada, ausente de pessoas. E o Cláudio permaneceu também fechado, repleto de lembranças… 

E foi ficando quieto, foi ficando calado, foi ficando encorujado, foi ficando perrengue, foi parando de brincar, foi parando de sorrir, não respondia a nenhum tratamento e um dia morreu.

Talvez digam que foi disto ou daquilo (complicações com o diabetes), pois a morte precisa de uma desculpa para acontecer.

Mas a perda dos amados pais lhe pesou muito no coração… Ver a casa que fora seu lar sempre fechada, negando-lhe a vida alegre que outrora vivera ao lado dos pais, também contribuiu bastante para piorar seu estado de saúde!

E eu, que achava que morrer de tristeza só acontecia nos livros, nos contos e nas novelas…

Mas morrer de tristeza é algo que de fato acontece, é a triste realidade…

E o Cláudio, seguramente, morreu foi de tristeza sim!


Então fica aqui registrado minha triste homenagem ao bom menino:


Já vi gente morrendo de morte morrida,

Morrer para sempre é dor toda vida,

Morrer de acidente, acontece e é triste,

Morrer de doença, é triste e sofrida,

Morrer numa briga, uma triste partida,

Morrer na velhice é triste certeza,

Mas é triste duas vezes, morrer de tristeza!


Que Deus o tenha em paz, em um bom lugar.



domingo, 26 de julho de 2020

22º O Farmacêutico Sahium

Filho de imigrantes libaneses, Abraão Antônio Sahium fixou residência em Guapé (MG) há muitos e muitos anos passados...
Ali abriu uma farmácia que existe até hoje e é a mais antiga da cidade.
Ajudou muita gente pobre no Guapé, pessoas que não podiam sequer comprar um comprimido. Visitava os enfermos em casa, dava assistência a quem já não podia mais sair da cama... Visitava-os mesmo que fosse a pé!
Numa cidade pequena sem muitos comércios especializados, a farmácia do Sahium também funcionava como uma boutique: Não só vendia remédios, mas também tinha os perfumes...
A imagem mais marcante na memória é de 1985 ou 1986... foram as suas visitas à casa de Dna. Oscarina e Sr. Candinho, nossos vizinhos ali da Rua Araúna, uma mulher gravemente enferma.
Da porta entreaberta que dá pra rua, pressentíamos aqueles momentos de angústia, quando ela, vítima de um câncer no pulmão, lutava para sorver um pouco de ar. Mas o "Sr. Sahium" estava lá, para aplicar talvez uma morfina, para prestar todo o conforto possível naquelas horas difíceis e finais.
Não tinha dia, não tinha hora. Era só chamar e o prestativo farmacêutico vinha atender os pacientes à domicílio.
Toda população guapeense o admirava... Sahium foi nosso médico e farmacêutico.
18 de Junho de 2020: Nesse dia ele se foi, mas deixou um legado gigante, uma imagem zelosa do bom e gentil profissional (e amigo) que sempre foi.

Segue abaixo uma pequena homenagem ao grande profissional. Uma pequena homenagem (e também uma sugestão) ao Farmacêutico que nos acompanhou desde criancinha, atendendo-nos desde uma pequena dor de dente, a um problema de saúde mais sério...
Alguém que atendia a todos com um lindo sorriso no rosto e que transmitia paz e confiança (mesmo quando apontava para nós, crianças, a temida agulha de injeção).
Vai com Deus, Sahium!

Avenida Brasil…
Quantas são as Avenidas
Que te homenageiam pelo nome?
Um nome que se destaca
Por importância entre tantos mil… 
Pois quase não há cidade,
Que não estampe em logradouros,
Esse nome de Brasil… 

Um País tão gigante,
Mas de povo tão sofrido.
Onde a fome é abundante,
E o futuro dolorido.
Onde os presos estão soltos
E o crime ainda compensa.
Onde os piores são poderosos
E o bom cai na maledicência.

Onde se trabalha pra pagar impostos
E viver só do que sobra.
Destino incerto e duvidoso,
Viramos pau pra toda obra.
Onde a Favela é quase tão grande,
Quanto a Cidade que a comporta.
Infraestrutura nem existe
E a miséria bate na porta.

E suas terras são divididas,
Subdivididas e depois vendidas.
Seu patrimônio é malcuidado
Isto quando não são incendiados!
Um País que dá mais importância
Ao salário do Deputado
Mas que se desapercebe
Dos que o fizeram estudado.
Se eu esquecer,
Alguém me ajude:
Mas tem bem mais privilégio
O político de Brasília,
Do que o Profissional da Saúde!

Uma Pátria que eu gostaria de chamar de minha Mãe,
Enquanto outros se contentam por chamar até de Madrasta.
Porém nem uma e nem outra valem,
Pois tu não fazes sequer o mínimo
Do que qualquer uma delas faça!

Um Brasil irreconhecível,
Que nem ouve os que te clamam.
Nem merece uma Avenida!
Pois castiga os que te amam.
Quando muito, dar teu nome
A um Beco Sem Saída.

Em Guapé também existe
Por Brasil uma Avenida.
Nela existe uma farmácia
Que é de longe a mais querida.

Entre aqueles mais antigos
Que à população serviu,
Houve um filho libanês
Nessa Avenida Brasil.
Seu sorriso aliviava
A dor do enfermo condenado.
Daqueles que nem tratamento
Salvaria o coitado.

Vindo a pé ou a cavalo,
Visitava todo mundo!
Um doente na família
Nunca foi abandonado.
Na Cidade ou no campo,
Rico, pobre ou vagabundo.

A Avenida é testemunha
Da Farmácia que cresceu.
A Cidade até mudou,
Mas ali permaneceu.
Como nada é para sempre,
Hoje um fato dolorido:
O seu dono tão querido
Infelizmente faleceu.
E Sahium era seu nome,
O nosso amigo farmacêutico.
Fez a vez até de Doutor,
Em época de tempos críticos.

Num Brasil pouco amistoso,
De pobreza e de injustiça,
Desnutrição, febre ou maleita,
A aflição era contida
Às vezes com suas receitas.
Pois seria bem mais pago,
Tirar de ti este “Brasil”
E dar-te nome ó Avenida,
Sem causar prejuízo algum,
Ostentando agora em suas placas:
“Avenida Abraão Antônio Sahium” (*)

Obs: Suas iniciais formam AAS, o princípio ativo da nossa querida e popular Aspirina...


21º - Padre João

"Estou pensando em Deus
Estou pensando no amor
Estou pensando em Deus
Estou pensando no amor
Os homens fogem do amor
E depois que se esvaziam
No vazio se angustiam
E duvidam de Você
Você chega perto deles
Mesmo assim ninguém tem fé."

Padre João.
Sou suspeito pra falar desse senhor, pois era alguém que jamais tive algum contato pessoal, visto que, pertencendo a outra religião, não frequentei a Igreja Matriz.
Um sujeito que sempre vi ao longe, fosse nas procissões que percorriam as ruas, ou nos seus esporádicos passeios pelas ruas da cidade – quando alguém, conduzindo o veículo, levava-o para alguma missão ou visita aos fiéis.
Nunca entabulei uma conversa com ele, nem jamais pedi sua bênção.
Nunca lhe dirigi qualquer palavra, ou parei para ouvir seu sermão. Afinal, nunca me vi na oportunidade de me aproximar dele.
Mas conheci-o bem cedo… 
Porque vivendo em Guapé, vivia-se, de qualquer forma, com a presença de Padre João em nossas casas!
Houve um tempo que podia-se dizer que metade da cidade fora batizada pelo Padre João. E a outra metade, por já serem mais velhos quando foi ordenado, levaram seus filhos a ele.
Nunca atravessou o umbral de minha casa, mas acordava-nos todos os dias de manhã, com as músicas religiosas que tocavam em seus discos de vinil!
Às vezes eu nem conhecia certo cidadão, ou talvez nem soubesse que andava doente… Mas ele nos avisava toda vez que alguém morria!
Não sabia quem era o noivo, nem mesmo o nome de seus pais. Mas sempre acabava informado de tudo: Quem eram os pais, os sogros, padrinhos e até o dia do casamento, porque ele nos avisava também através dos alto-falantes da Igreja Matriz.
Nunca fui à missa, mas ficava sabendo do seu horário e até mesmo de algumas broncas que levavam certas pessoas, quando se atrasavam para a cerimônia; porque sua voz ecoava aos quatro ventos, nos avisando...
Era um dia diferente: um dia apreensivo e até mesmo esperado com ansiedade, a sua visita nas Escolas, no Grupo Primário… Foi uma pena, mas se ela aconteceu – e eu creio que sim – eu não o vi neste dia também.
Notícias diversas eram publicadas naquele “jornal falado” que se fazia ouvir aos quatro ventos nos alto-falantes da torre de quatro lados:
Desde um aviso qualquer, sem importância nenhuma (mas que certo cidadão insistia que se anunciasse nos alto-falantes), até mesmo alguma notícia de maior importância, como algum acidente nas estradas, ou algum evento importante à cidade, para os próximos dias.
Algumas vezes o padre exercitava sua oratória e fazia as pregações a partir do microfone, para toda a cidade ouvir.
Conselhos matrimoniais, conselhos aos jovens, admoestações aos desencaminhados, reprimenda nos casais de namorados que andavam pela Praça durante a noite, a chamada para a missa, o serviço contratado, o negócio combinado, etc… Tudo era falado, tudo era anunciado.
A missa de corpo presente era anunciada sob a execução tristíssima de alguma música religiosa. E os sinos repicavam na derradeira vez que o cidadão atravessava as portas da Matriz, quando era então conduzido pelos parentes e amigos até sua derradeira morada, no final da Rua que descia da Praça até o portão do Cemitério.
Lembrança triste de um dia, em 1983, quando uma menina, ainda bem jovem foi levada ao cemitério. Sofrera de câncer e veio a óbito. Ela morava ali mesmo, na Rua que descia para o Cemitério. E conheci-a de vista.
No momento que seu corpo fazia a curva pra descer a rua, já no finalzinho da tarde de um dia nublado, a Igreja tocava uma triste música… Eu, que passava por lá naquele momento de bicicleta, esperei com respeito o cortejo passar. Tão nova! Mas foi seu destino… 
O Zé da Hora era sempre convocado, como se pudesse, de qualquer forma, mesmo sendo o “homem do sino”, alguém capaz de perder a Hora… 
Como toda pessoa proeminente na sociedade, Padre João também teve seus admiradores e críticos.
E tinha também aqueles que – sem temor – imitavam sua voz arrastada e de tom afetado, com sotaque alemão… Esses também recebiam uma repreensão pública, a partir dos alto-falantes da Igreja Matriz!
E inevitavelmente, com meio século de sacerdócio, foram muitas as “histórias do Padre João”.
Verídicas ou fictícias, essas sempre populavam a imaginação e a consciência das pessoas.
Eu, pelo distanciamento com a sociedade religiosa e católica da cidade, com toda certeza não conheci dez por cento delas!
Porém, muita gente – principalmente o povo mais velho de Guapé, e também aqueles que já eram adolescentes em 1984, 1985 – com certeza guardam memórias muito melhores e bem maiores do que essas que eu possuo.
Mas entendo que o sacerdote foi, inegavelmente, “a cara da cidade”.
Guapé se amalgamava em torno de Padre João.
Brigas de família, brigas de vizinhos, brigas entre credores e devedores, rixas e todo tipo de diferenças, podiam ser resolvidas com os conselhos do Padre, no confessionário.
Foi rígido, contumaz, mas também foi admirado pelos que receberam seu auxílio nas horas de necessidade.
Houve um tempo, na década de 80, que ordens superiores levaram-no da cidade, pois sua saúde inspirava cuidados e ele já não podia administrar bem o sacerdócio.
Mas não teve jeito: Mesmo fragilizado pela idade e pela doença, Padre João foi outra vez trazido à cidade. A vida do padre estava ali, ligada ao povo que durante tantos anos ele doutrinou.
Foi ali em Guapé que ele viveu a maior parte de toda sua vida. E era ali naquela cidade que deveria abandoná-la, quando chegasse a hora.
Então, certo dia, o padre não falou mais nos alto-falantes… 
E foi pela voz de outros que se fez anunciar sua partida.
Uma triste e sentida partida para muitos, que fez a cidade parar momentaneamente.
Padre João ganhou um busto, uma praça e um jazigo ao lado da Igreja que tanto amou.
Não o conheci pessoalmente, é verdade.
Mas alguma coisa ficou marcada, com certeza. Porque hoje, ao longe, escutei uma bela canção do Padre Zezinho… E lembranças me vieram à memória.
E, automaticamente lembrei-me da infância, das ruas poeirentas de Guapé, dos campinhos de futebol, das quadras vazias, do enorme campo de aviação, da velha rodoviária, da Praça do Cruzeiro, da Praça da Matriz, do Bosque, da Figueira, do Buracão e da Rua Três de Fevereiro; do velho ônibus da Viação Martins, da homenagem ao Homem do Campo cantada na voz de Dom & Ravel, do enfeitado Corpus Christi com palha de arroz colorida, das músicas religiosas tocadas a partir da torre da Igreja (inclusive essa, do Padre Zezinho), do velho coreto, da velha fonte, das árvores que enfeitavam a Avenida Brasil…
E, lógico, da inconfundível voz do Padre João… 

"Tudo seria bem melhor
Se o Natal não fosse um dia
E se as mães fossem Maria
E se os pais fossem José
E se a gente parecesse
Com Jesus de Nazaré
Estou pensando em Deus
Estou pensando no amor
Estou pensando em Deus
Estou pensando no amor…"

domingo, 16 de setembro de 2018

20º - Monareta

Que saudades de você!
Década de 1980, eu ganhava muitos gibis (revistas em quadrinhos) cada vez que eu visitava meus avós, em São Paulo…
Naquela época saiu uma moda, uma campanha impressa nas folhas dos gibis, onde vinha escrito assim: “Não esqueça a minha Caloi”
Foi o pesadelo de muitos pais, principalmente das famílias de baixa renda, numa época que bicicleta era um objeto caro e difícil de se comprar.
Também recortei meu bilhetinho; e na inocência de criança, entreguei-o ao meu pai, naquele longínquo ano de 1980. Estávamos na cozinha da casa de meus avós. A gente se preparava para a viagem que nos traria de volta a Guapé, depois de ter passado as férias escolares na casa de vovó.
Eu mal sabia que a viagem era o fruto de muitos meses de economia, de um pai que lutava todos os dias sob o Sol e sob a Chuva, para trazer o pão à mesa de casa, na humilde profissão de caminhoneiro.
Meu pai pegou o bilhete, no seu rosto havia um leve sinal de sorriso.
Não falou nada. Apenas pegou e guardou.
Também na minha inocência de criança, não percebi a tristeza oculta por trás daquele morno sorriso… Meu pai tinha (na época) pelo menos cinco bocas pequenas para tratar…
Então viemos embora, voltar a vida na rotina em Guapé, a cidade escolhida para morar.

A chegada dela não foi no Natal. Não foi no meu aniversário. E também não era Caloi.
O seu dia da chegada é confuso nas lembranças: Lembro de uma viagem de caminhão que fizemos; meu pai, minha mãe, eu e meus irmãos pequenos. Também lembro de ter pernoitado na casa de algum conhecido da família, em alguma cidade próxima de Guapé.
Não sei se ela veio para casa oculta na carga do caminhão, em cima da carroceria…
Ou se ela já me esperava em casa!
Mas associo a surpresa do presente, a essa imagem da viagem.
Não era nova. Papai conseguiu comprá-la de segunda ou terceira mão. Porém, ela foi toda reformada, a mando de meu pai.
Mas para atender ao pedido do meu bilhetinho, eu não sabia quantas marmitas foram economizadas, o quanto aquele sonho infantil custou ao meu pai, que num velho caminhão Chevrolet 70, ausente o dia todo de casa, fazia carretos de adubo ou café, pelos sítios de Guapé!
Lembro da felicidade pura de menino, ao ver seu presente!
E imediatamente esqueci da Caloi!
Eu possuía agora uma reluzente Monareta: Aquela bicicleta infantil da Monark que fez tanto sucesso nos anos 70 e 80…
Era vermelha. Meu pai mandou que trocassem os cabos de freio. Também colocou um novo selim. Para-lamas!
Havia uma buzina no guidom, daquelas de borracha (fom-fom). Uma nova catraca, coroa e corrente também novas! Um par de luvas no guidom.
E o cheiro dos pneus? Que delícia! Pneus novos de bicicleta.
Lembro de minha preocupação boba: Medo de que os “pelinhos” dos pneus novos logo se desgastassem, ao atrito com o chão…
Faltou alguma coisa: Eu queria a bomba de encher pneus. Também queria aquela proteção em volta da corrente, “pra barra das calças não enroscar na corrente”… Também queria adesivos: muitos adesivos para enfeitar meu precioso presente!
E Papai deixou que eu comprasse na bicicletaria do Expedito Monteiro todos os acessórios que desejei, para incrementar minha bicicleta. A conta que eu fiz, meu pai também pagou.

Em frente o Hospital da Cidade (naquele tempo funcionava o Colégio São Francisco) havia um terreno vago, um campo vazio onde a molecada do bairro jogava futebol (hoje ocupado por uma escola).
Ali, apoiado por minha irmã menor que segurava na garupa da bicicleta, eu dei minhas primeiras pedaladas! Foi ali que aprendi andar de bicicleta. A sensação era muito diferente dos “velocípedes” que eu já experimentei!

Nunca fui muito “sociável”… Nos tempos que morei na Rua Dr. Joaquim Coelho Filho - nº 409, havia mutirões que vinham de São Paulo, de São Carlos, etc. para construir a Igreja dos crentes.
Nessa época de construção, em casa era o dia todo aquele movimento, que embora transmitisse um clima de festa, de contentamento… provocava um movimento que não era a minha praia, que sempre preferi a tranquilidade, a calmaria, e também um vai-e-vem reduzido de pessoas à minha volta.
Então, ao chegar da Escola, pra me ver ausente de todo esse burburinho, eu saía de casa na bicicleta, pedalando pelas ruas da cidade. Eu ganhava talvez uns 10 cm. de altura, quando estava montado nela!
Aprendi a pedalar sem segurar o guidom! Então abria meus braços no Campo da Aviação. E eu era o piloto de um avião vermelho, que longe do solo voava tranquilo, com um potente motor tocado a pedal!
Uma liberdade indescritível. Uma felicidade descompromissada e espontânea, de criança que só quer ser feliz. Era uma felicidade diferente dessa felicidade adulta, construída, onde você sabe que “DEVE ser feliz, porque tudo está indo bem na vida, porque tem saúde e tem o que comer na mesa”
Uma simples e pura felicidade de criança, que embora não tivesse uma Caloi, vivia muito feliz com sua Monareta!

Tempos depois ela perdeu a importância… Os compromissos da vida, as responsabilidades no trabalho e as paixões, disputaram seu lugar dentro do meu coração; e ela perdeu seu reinado.
E certo dia desapareceu de nosso quintal, quando já morávamos na Rua Três de Fevereiro, onde antigamente funcionava a Padaria do Zé Osvaldo.
Passou alguns meses, eu até descobri quem foi que a levou embora… E seu esqueleto apareceu, todo enferrujado, nos fundos da “Rua do Buracão”, numa época que as águas da Represa recuaram por causa da seca. Deixei-a por lá, descansando em seu túmulo, no lugar escolhido por quem a levou.
Mas isto não vem ao caso. Está no passado e já foi perdoado.
O que eu não perdoo mesmo, foi minha falta de sensibilidade, de não tê-la conservado com carinho… Minha bicicleta que tanta felicidade e prazer me deu, quando eu ainda era criança.

Hoje, embora possuo um carro não muito velho, todavia não dispenso o uso da bicicleta!
Tenho uma Caloi City (também não muito nova) e com ela eu vou e volto TODOS OS DIAS ao trabalho. São aproximadamente 10kms. diários, aproximadamente 250kms. por mês. Faço o cálculo somando as quatro vezes que ando com ela diariamente: Vou para o trabalho, volto para almoçar. Depois retorno ao trabalho e volto à tarde pra casa. Faça frio ou calor, de Segunda a Sábado.
Só não vou de bicicleta se está chovendo muito. Todavia, a bicicleta já faz parte da minha vida. Por tantos quilômetros que já andei de bicicleta, acho que poderia abraçar o mundo, com meus pés em teus pedais!

Como dói essas lembranças...
E se hoje eu pudesse andar em você outra vez,
Com a felicidade pura de criança,
Quem sabe por um flash de tempo eu me sentiria
Com aquela liberdade de outrora,
A voar de braços abertos pelo Campo de Aviação,
Quando minha vida ainda estava na aurora…
Sentir o perfume de teus pneus novos,
Segurar teu guidom
E apertar sua buzina: Fon-fon!